quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Um dia em Chennai

O calor sufocante já se fazia sentir nas ruas de Chennai, Índia, quando um raio de sol penetrou entre as persianas da janela do quarto e embateu na minha cara. Com um salto levantei-me da cama e ao olhar para o relógio, o nervosismo atingiu-me como um raio de sol. Era o meu primeiro dia de aulas numa nova escola, num país completamente diferente. Quando recebi a notícia de que iria viver para Índia, para além de ter noção que seria uma grande mudança, de certa forma gostei da ideia de iniciar uma ‘’vida nova’’ e mal esperava de ir para a escola e conhecer novas pessoas e culturas. Agora que o dia de aulas chegou, de certa forma desejava que nunca tivesse chegado.
Rapidamente aprontei-me e dirigi-me para as ruas de Chennai. O sol já brilhava, o calor vagueava pelas ruas e centenas de pessoas marcavam presença nelas. Os autocarros, cheios de pessoas, preenchiam as estradas, as centenas de táxis, que se deslocavam de um lado para o outro, e as pessoas dificultavam o uso das ruas. Ao tentar deslocar-me naquela confusão, observava as pequenas tendas e mercados que enchiam a cidade de cor com as mil e uma coisas que ofereciam, desde comida, que me era completamente estranha, até roupas, principalmente os tradicionais saris, que eram usados pela maioria das mulheres indianas e que a cor desses mesmos mostrava a que etnias pertenciam. O cheiro intenso libertado pelos veículos misturado com o cheiro da comida tornava o ambiente enjoativo. Uma das tendas libertava um odor bastante agradável e e ao aproximar-me dela, verifiquei que era libertado por pequenos frascos que continham um óleo. Curiosa, perguntei à senhora da tenda o que era e, embora com alguma dificuldade em compreendê-la, fiquei a saber que cada nome tinha a sua própria fragrância e esses pequenos óleos estavam feitos para cada nome. Assim, decidi comprar um pequeno frasco com o odor característico do meu nome, tendo porém alguma dificuldade em pagar à senhora uma vez que não estava habituada à rupia indiana.
Ao chegar ao meu destino, observei atentamente a minha nova escola. Era pequeníssima e antiga. À entrada da escola, uma senhora com um sari vermelho esperava-me. Era a directora da escola e falava muito bem inglês pelo que desta vez foi ela que teve alguma dificuldade em entender o que eu dizia. Começou por mostrar-me a escola que era, tal como se podia verificar do exterior, muito pequena. Finalmente acompanhou-me até à sala, onde iria ter aula, para poder conhecer a minha nova turma. Ao entrar na sala, muito nervosa, senti que todos aqueles olhes negros estavam pousados em mim, o que me causou alguma inquietação. Ao olhar para o quadro consegui entender que estavam a ter uma aula de matemática. A professora, muito simpática, sentou-se ao meu lado e durante toda a aula esteve-me a contar um bocado sobre Índia, uma vez que o meu conhecimento era muito pouco. Após terminada a aula, estava na hora do almoço. Quatro raparigas da minha turma, cujos nomes eram Saranja, Sharmila, Anjali e Priya vieram ter comigo e juntas dirigimo-nos para a cantina da escola. Ao entrar na cantina, cheguei a pensar que iria desmaiar devido ao cheiro intenso a comida que de alguma forma era pouco agradável. Por sorte as minhas colegas de turma aperceberam-se e fomo-nos sentar numa mesa perto da janela. Ao olhar para a comida desconhecida que se encontrava no meu tabuleiro, embora com algum receio, provei e rapidamente peguei no copo de água e tentei apagar o ardor que se tinha instalado na minha garganta. O famoso ‘’chapati e chutni’’ era muito picante. As quatro raparigas começaram-se a rir e decidi não comer mais. Após o almoço, deram-me a provar chá de limão. Já tinha ouvido dizer que os chás de Índia eram muito bons e ao provar aquele chá, de facto, não tinha mais nada a fazer senão concordar plenamente. Depois de um almoço agradável, instalamo-nos no corredor da escola, fugindo assim ao intenso sol e calor sufocante que era frequente em Índia. As minhas colegas de turma fizeram-me muitas perguntas acerca de como era a minha vida em Portugal, como era o meu país, como eram as escolas, as pessoas e a cultura. Com as minhas respostas que, na minha opinião, não eram nada de mais, elas ficavam admiradas de como diferente era Portugal. Quando chegou a minha vez de lhes fazer perguntas, fiquei igualmente admirada mas pela parte negativa, enquanto que elas ficaram pela positiva. Saranja vivia numa pequena casa bastante afastada da cidade, tendo que andar imenso a pé para chegar à escola. Vivia com a mãe e três irmãos, um deles mais velho. Quando chegava a casa ajudava a mãe nos trabalhos domésticos, cozinhava e cuidava dos irmãos mais novos, enquanto que a mãe ia trabalhar para uma pequena fábrica de tapetes. Sharmila vivia na cidade e os pais tinham uma pequena tenda que vendia saris, na qual aos fins-de-semana ia ajudar e. Como já tinha 17 anos, o pai já lhe tinha arranjado um marido e em breve iria-se casar, embora não gostasse do seu futuro marido. Anjaly e Priya eram irmãs e também elas viviam na cidade. A mãe estava muito doente e o pai não conseguia sustentar a família vendendo fruta, pelo que as duas raparigas, após as aulas, iam trabalhar para um pequeno super-mercado. Quando olhamos para o relógio já passava da hora do início da aula de inglês e corremos até à sala. A aula de inglês foi bastante animada porque o inglês falado em Índia é diferente do que costumamos ouvir, sendo assim engraçado ouvir indianos a falar inglês. Terminado este primeiro dia de aulas, Sharmila acompanhou-me até casa. Durante o percurso até casa, enquanto falava com Sharmila, senti de repente alguém tocar-me no ombro. Ao olhar, estava uma senhora velha atrás de mim, com um ar cansado e triste. Esticava a mão na minha direcção e suplicava por dinheiro. Assustada, recuei e fui empurrada por Sharmila, que mandava a velha senhora embora. Ainda assustada com o aspecto da senhora, que era horrível, e a pensar na súplica dela, Sharmila disse que é costume haver pessoas a pedir dinheiro e, muitas vezes comida, nas ruas de Chennai mas, que devia começar a acostumar-me a isso e simplesmente ignorar.
Finalmente tinha chegado a casa e foi nesse momento que a saudade por a minha ‘’antiga vida’’ começou a surgir e não consegui conter as lágrimas. Sentia falta dos meus amigos, da minha família, da minha casa, enfim, sentia falta de tudo.
Este dia ajudou-me a entender uma coisa: Só damos valor ao que temos quando o perdemos. Neste caso, umas semanas atrás, não dava muita importância a pequenas coisas que faziam parte da minha vida como, ir para a escola, passar esse tempo com os meus amigos e outros pequenos actos que eram frequentes. Após este dia, dava tudo para ter esses pequenos momentos de volta. Nas aulas de filosofia, quando abordamos o capítulo dos valores, aprendi que a pirâmide dos valores, que construímos, pode vir a mudar com o tempo e com a experiências que o indivíduo vai adquirindo ao longo da vida, assim como pode variar em função do grupo social e da cultura.
Indía é um país fascinante que, por detrás desse fascínio, esconde muita coisa. A pobreza extrema é visível nas suas cidades e ao mesmo tempo é completamente ignorada. As mulheres não são livres de escolher os seus maridos. Jovens são obrigados a trabalhar pelo facto de a família, de outra forma, não ter maneira de sobreviver. Tudo atinge a nossa sensibilidade, pelo que não podemos ficar impassíveis perante aquilo que nos rodeia. Porém não é o que acontece neste país. Na minha opinião, esta primeira experiência neste país tão diferente do nosso, certamente mudará a minha pirâmide dos valores. Liberdade vai começar a fazer parte dos meus valores, assim como dignidade humana e justiça. Nunca antes tinha reflectido sobre tais coisas podendo assim admitir que esta mudança me ajudou a reflectir melhor.
Após ter reflectido sobre isto, desloquei-me até à janela, abrindo-a, observando assim a cidade de Chennai coberta pela noite e respirando uma brisa de ar fresco que invadiu o quarto, pensando como seria o dia de amanhã e esperando que um dia me pudesse vir a habituar a esta novo país.

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