quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Contraste de valores

Ban Nai Soi , Janeiro de 2010
Queridos pais,
Já estou aqui há muito tempo, tanto que não sou capaz de me lembrar do vosso rosto. As saudades são tantas que decidi escrever-vos, para ver se este aperto que tenho acaba. Não vos telefonei antes porque não existem meios de comunicação, alias nem sequer existe uma casa de banho quanto mais.
Vocês sabem de como eu ia ansiosa para ver e conviver com a verdadeira natureza, mas isso não passou de uma utopia. Todos aqueles paradigmas que me incutiram sobre o que era a verdadeira natureza, como se a sociedade em geral soubesse o que é a verdadeira natureza e pobreza.
Nesta aldeia, conheci uma tribo chamada Karén ou, mais popularmente conhecida, por "as Karén de pescoço comprido". Para os conhecer de perto tive de pagar 250 Bath (5 euros), disseram-me que eram do governo da Tailândia e que os fundos eram para ajudar esta etnia. Para vos ser sincera, não acreditei no que me disseram, nem mesmo quando me apontaram uma arma, pois, a Tailândia não consideram tailandeses os Karén, mantendo-os prisioneiros ao ar livre, com fronteiras bem vigiladas para ninguém sair, a não ser os turistas.
Os Karén são apenas uns refugiados e prisioneiros, fugiram para o meio da natureza para conseguirem criar as suas próprias leis, no entanto, acabaram por ficar prisioneiros ao ar livre.
Todos os que entram nesta aldeia, ficam fascinados pelas espirais que as mulheres têm no pescoço, tirando-lhes fotografias como se tratassem de animais num jardim zoológico, acabando até por lhes chamar " as mulheres girafa".
Uma coisa que me impressionou foi...conhecer a Major. Ela tinha 19 anos e conseguia falar tantas línguas com muita perfeição que ...fiquei estupefacta, pois as escolas de lá, se é que se pode chamar escola àquilo, não tinham professores de línguas estrangeiras. Inglês, Espanhol, Francês, Basco, Catalão, Galego... mesmo muito surpreendente, tudo aprendido com turistas como eu.
Desde o início, gostamos uma da outra e até me convidou para ficar lá por uns tempos, mas com a condição de ela me mostrar e ensinar a sua cultura e eu ensinar-lhe Português (era a única língua que ela ainda não tinha aprendido).
A Major explicou-me que quando tinha 5 anos, a mãe lhe colocara 5 espirais no pescoço, pois para elas as espirais significavam elegância e serviam para mostrar a riqueza das mulheres. Por vezes, estas espirais funcionam como castigo, pois,quando as mulheres cometiam o adultério, eram-lhes retiradas as espirais e assim as mulheres passavam a ser consideradas mortas (espiritualmente). Olhem, se fosse na nossa sociedade, quantas é que seriam assim...já imaginaram?
De manhã, bem cedo (sem tomar o pequeno-almoço...mas que fomeca) preparamos as tendas para vender alguma coisa àqueles turistas que vinham visitar "as mulheres girafa". Mas que nervos que me deram aqueles estrangeiros comportarem-se como se nós fossemos animais(nós,porque nesse dia, eu também tinha espirais no pescoço, 5 para ser mais especifica). Aí...como são tão pesadas, só consegui andar com aquilo durante 2 horas...acho que não está mal para quem não está habituada a isto.
Entretanto, já eram horas de jantar e eu tive de ir comer, não sei bem se aquilo eram gafanhotos ou minhocas, mas pensando bem, até era saboroso...(tenho saudades dos cozinhados da mamã,..uuaahhh). Pior de tudo, é quando chove, há sempre umas quantas pingas que me molham toda e o chão onde durmo, até é engraçado...pois continuo a gostar da trovoada.
Dentro de 3 dias, estou de volta a casa.
Uma regalia que a Major não tem, visto que não pode sair daqui, nós bem tentámos mas nada...mas, mesmo não sabendo como o mundo é lá fora, ela sabe que é bem diferente, e sabe Português, nada mau para quem nunca saiu desta prisão ao ar livre.
Antes de me ir embora, vi que eram FELIZES, mesmo aqui aprisionados sempre sonhando e com a esperança de algum dia puderem sair da aldeia(um sonho improvável de se concretizar, mas não impossível),sempre com a eterna dúvida "será que o mundo lá fora é mais belo do que aqui?". Uma resposta que todos os turistas como eu não sabem responder.
Mas quando chegar, conto-vos mais coisas espantosas, que a Major em ensinou.
Grandes beijos, da vossa filha que vos ama muito,
Inês Andias Ferreira
P.S.- Papá, tinhas razão, o mais importante é a nossa LIBERDADE.

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