21 de Junho de 2010 Dia 3 de Junho, depois do jantar, os meus pais disseram-nos que queriam ter uma conversa familiar comigo e com o meu irmão mais velho. Ao princípio fiquei um pouco assustada (pensei mesmo que a minha mãe estivesse grávida… pela quinta vez!). Mas não era uma nova gravidez, era a notícia de uma proposta que tinha sido feita aos meus pais: a proposta de ir fazer trabalho de voluntariado durante meio ano para o Haiti. Ao início fiquei um bocado desorientada (e os filhos, e o trabalho, e a casa?). Pensei em todos os compromissos da vida que os meus pais iriam deixar para trás (mesmo se apenas durante meio ano, com certeza essa viagem acarretava muitas consequências).
Naquela noite mal consegui dormir. E se dependêssemos que outros viessem cuidar do nosso corpo e animar a nossa alma? Podemos ajudar aquelas pessoas de diversas maneiras, e os meus pais descobriram as suas. E se fosse cá, na nossa cidade? Se fosse com a nossa família, ou com amigos nossos? Muitas vezes a dimensão da coisa só faz sentido para alguns quando toca directamente sobre as suas vidas. O mais importante para aquelas pessoas não é uma ajuda somente monetária, nem precisam somente que a indiferença seja vencida, precisam sim que as pessoas possam transformar isso em actos.
Depois desta reflexão toda, também eu comecei a ficar cativada por esta escolha dos meus pais. O meio ano que os meus pais iam ficar no Haiti compreendia as férias grandes, os meus três meses de férias. Será que eu também não podia fazer a minha parte? Talvez em vez de ficar na praia, ou em vez de me divertir com os meus amigos, devesse tentar fazer alguma coisa concreta por aquelas pessoas. “A não indiferença perante o mundo implica que a nossa vida não signifique apenas contemplar passivamente, mas antes agir e participar”.
Nas aulas de Filosofia, de acordo com o tema “Análise e compreensão da experiância valorativa” que estávamos a estudar, cada um construiu a sua pirâmide dos valores. A hierarquizaçao dos valores pode ser efectuada de diferentes maneiras, conforme as pessoas e as circunstâncias. Mas as hierarquias que vamos fazendo ao longo da nossa vida não se estabelecem de modo arbitrário, como se todos os valores possuissem um grau de valiosidade equivalente, ou se o modo de valorar fosse um acto meramente aleatório. A selecção dos nossos valores fundamentais implica um comprometimento pessoal. Um dos valores com maior valência que pus na minha pirâmide foi a solidariedade. Ora, se temos de nos comprometer com os valores que escolhemos, mais uma razão que me deu força e coragem para levar a minha ideia avante.
No dia seguinte fui falar com os meus pais, e perguntei se havia a possibilidade de eu também ajudar durante os meus três meses de férias. Apesar da admiração inicial, eles ficaram bastante contentes com a minha atitude, e foram tentar saber se haveria alguma coisa que pudesse fazer no Haiti. A resposta foi rápida, e sim, realmente havia uma coisa que eu podia fazer. Disseram que podia ajudar com as crianças, passar algum tempo com elas, porque o número de crianças que ficou sem pais é enorme, e neste momento muitas delas não têm ninguém.
Quando contei às pessoas a decisão que tinha tomado, muitos pensaram e tentaram fazer-me ver o horror que estava lá, a quantidade de mortes que tinha havido e o desespero que as pessoas estavam a passar. No entanto, eu só conseguia penser nos vivos que ainda lá estavam. Especialmente, nas crianças! O número de crianças orfãs no Haiti já era enorme (umas 380 mil!), e, após o terramoto, aumentou para dezenhas de milhares.
Amanhã é o dia da partida. Não vou dizer que estou serena, convicta de que vai correr tudo bem. Não, tenho de admitir que o medo é muito. Desde que se começou a aproximar o dia, tenho sentido cada vez mais medo, mais ansiedade, e tenho pensado mais nas coisas que vou deixar para trás durante estes três meses. Principalmente nos meus irmãos. Eu sei que eles ficam bem, aliás, os meus pais não seriam capazes de ir se não tivessem a maior das certezas de que eles ficam em boas mãos.
Mas, apesar de todas estas dúvidas, acredito que seja a melhor atitude que possa tomar, e sem dúvida que estou a ser fiél aos meus valores.
15 de Julho de 2010
15 de Julho ... Como vêm, já passou imenso tempo desde que cá estou! Peço desculpa por nunca mais ter escrito nada, mas a vida aqui (como devem imaginar) não me tem permitido fazê-lo.
Tenho de admitir que nos primeiros dias da minha estadia aqui no Haiti, estava a ser difícil a minha adaptação. Ainda se sente muito o clima de violência causado pelo sismo, apesar de se notar uma grande diminuição ao longo do tempo.
O idioma oficial de cá é o francês, mas a maioria das pessoas fala o créole, um dialeto do francês que incorpora palavras africanas. Para minha sorte, tanto o próprio francês como esta derivação, o créole, são línguas semelhantes ao português, e rapidamente me habituei a falá-las.
Acredito que estejam curiosos, e que queiram saber como é o meu dia-a-dia por cá! Bem, eu máto-vos a curiosidade, e vou tentar falar um pouco da minha rotina (apesar de mudar todos os dias, porque todos os dias acontecem coisas novas!).
Muitos devem pensar que estou a viver numa tenda de um metro cúbico com mais de mil pessoas... Não, não! Também não chegou a esse ponto! Neste momento estou instalada numa grande tenda, que foi instalada para acolher todas aquelas crianças que ficaram sem ninguém. É como um orfanato improvisado. As condições aqui não são más de todo, temos tido o apoio de várias organizações, que arranjaram camas, casas-de-banho, jogos para as crianças, roupa,...
A fauna de cá é caracterizada por animais de pequeno porte, com algumas espécies de roedores e um grande número de insecto e répteis, sendo os lagartos e as iguanas os mais comuns (no ínicio, foi difícil para as pessoas habituarem-se aos meus "guinchinhos", mas agora já se habituaram, e até acham piada). Quase todos os Haitianos são negros, mas existem também alguns mulatos e outros brancos (a percentagem de brancos é muito reduzida, mas visto que estão por cá muitos voluntários brancos, o número aumentou um pouco). A maioria da população de cá é católica, e existe até uma tenda onde se celebra uma missa por dia. A religião cá é muito praticada, e as pessoas têm uma fé enorme.
Agora falando da minha rotina... Acordo por volta das oito da manhã (é conforme as crianças: se acordarem cedo, eu acordo também cedo, se acordarem tarde, hum... que maravilha!). O nosso pequeno-almoço é muito reduzido, cada uma tem direito a um pão e a um copo de água. O resto do dia varia muito, conforme as condições climatéricas, a disposição das crianças,... O meu principal objectivo é proporcionar às crianças momentos divertidos, e tentar reduzir o seu sofrimento causado pela perda dos que lhes eram próximos. Tanto posso brincar às "escondidinhas" com elas, como fazer puzzles, contar histórias, ou até ajudar as enfermeiras a tratar aquelas que tenham lesões ou estejam doentes.
Peço desculpa, mas o meu pequeno intervalo está a acabar, e já está a tornar-se difícil continuar a escrever-vos (já tenho o Aadi às minhas cavalitas, o Badu já quer fazer um desenho no meu diário, e a Chiku já quer fazer-me um penteado).
8 de Setembro de 2010
Cheguei ontem a casa. Pensa-se nos compromissos da vida. Que se tem irmãos, avós, amigos, (férias! praia, sol, mar,…),… Desprender-se de tudo isso pode ser muito difícil. Mas enganam-se os que pensam que fui ao Haiti simplesmente ajudar. O que se vive vale muito para nós próprios, para a compreensão da nossa própria vida. Estar no Haiti fez-me ver o que pode ser não ter mais família, não ter mais casa, não ter mais carinho, não ter mais sonhos,… e ainda assim insistir em viver, quere viver, lutar,…
Sem dúvida que estes três meses mudaram a minha pirâmide dos valores. Realmente era verdade o que aprendi em Filosofia, que a pirâmide dos valores não era eterna, podia mudar ao longo do tempo ou conforme as situações. Se antes não dava valor ás “pequenas” coisas da vida, como ter comida para almoçar, poder andar na escola, ter uma cama onde dormir, a todos os confortos que tenho em casa, agora, sem dúvida, passei a dar. A minha atitude perante as coisas mudou. A minha esperança e espírito de sacríficio cresceram significativamente. Até a minha fé aumentou depois destes três meses.
Se iniciei a minha visita ao Haiti para ajudar as pessoas de lá, por achar que devia fazer o sacrífico de renunciar às minhas férias, agora agradeço profundamente a quem me deu esta opurtunidade.